Terra Nova | Bahia | Brasil | Ano 2011
Tiragem 01: 01/15
Tiragem 02:
MATÉRIA DE POESIA
Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância
servem para poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para a poesia
Terreno de 10 x 20, sujo de mato - os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia.
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmicos
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferrerira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura
servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore
se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para a poesia
As coisas que os línquens comem
- sapatos, adjetivos -
têm muita importância para os pulmões da poesia
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para a poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
a lagartixa da esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom para a poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora
Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.
Manoel de Barros
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